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sábado, 23 de janeiro de 2010

RECUSE ESSA IDÉIA




EU SEI QUE A GENTE SE ACOSTUMA...MAS NÃO DEVIA
( Marina Colasanti)


A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não abrir de tudo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma a acender cedo a luz.
E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.


A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não da para almoçar.
A sair do trabalho porque já é de noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.


A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre guerra.
E aceitando a guerra
aceita os mortos e que haja números para os mortos.
E aceitando os números aceitanão acreditar nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números da longa duração.


A gente acostuma esperar o dia inteiro e ouvir ao telefone: hoje não posso ir...
A sorrir para as pessoas sem perceber um sorriso de volta, a ser ignorado quando  tanto precisava ser visto.


A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita.
E a lutar para ganhar dinheiro com que pagar e a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais e a procurar mais trabalhos para ganhar mais dinheiro
para ter com que pagar nas filas em que se cobra.


A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes.
A abrir as revistas e ver anúncios.
A ligar a televisão e assistir comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade.  
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na rua infindável dos produtos.


A gente se acostuma à poluição, às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarros.
A luz artificial de ligeiro tremor.

Ao choque que os olhos levam na luz natural. As bactérias na água potável.
À  lenta morte dos rios.
Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo na madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher frutas no pé, a não ter sequer uma planta.


A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.

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